NOVOS SIGNIFICADOS ATRAVÉS DA PLURALIDADE QUE CONSTITUI O ‘NÓS’: A QUEM SERVE ISTO QUE CHAMO DE SER HUMANO?

Caetano Veloso, em sua música “Divino maravilhoso” nos diz: “É preciso estar atento e forte! Não temos tempo de temer a morte”. Contudo, observo ao meu entorno e antes da brecha de conseguir contemplar seres humanos com o “seu telencéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor” (Ilha das Flores, 1989)[1], vejo Frankensteins ambulantes moendo a si e gastando outros por uma vida que se findará em
si mesma e que em pouco expressa as suas paixões mais entranhadas. Se fala muito sobre morte física, mas, quem ousará dizer sobre os golpes fatais que matam a alma? Proseiam amor e em amor ao próprio ego: escarram ódio, distorcem ofícios, assaltam esperanças, deturpam um futuro que não era, mas já se foi. Com um discurso galante, prometem “pão”, enquanto o “circo” somos nós mesmos e toda a construção arquitetada para roubar nós de nós. Como, então, viveremos?

Optar por ser alguém de alma e rosto, ainda que trincada e costurada, marginalizada e caluniada; para mim, é a mais heroica das escolhas e, também, a mais inclemente. Uma vez descobrindo seu eu real, por além das expectativas lhe imputadas e/ou superestrutura que controla os corpos e forma subjetividades, jamais conseguirá se amesquinhar em tentar ser outros que não você mesma e/ou se reduzir a caixas formatadas e discursos monopolizados que em pouco ou nada te representam. Talvez essa escolha e
não rendição lhe custe algo, senão tudo. Até lá, “na calmaria que antecede a dor” (Arrais, 2015) [2] , o autoconhecimento te introduzirá na escalada de uma íngreme montanha, que antes de bússola, irá te dilacerar e exigir a criativa capacidade de reconstruir a partir do não pronto. Neste ponto de partida, “tudo, tudo, tudo, tudo o que nóis tem é nóis” (Emicida, 2019) [3] sendo convidadas a refletir: Quem, de fato, somos? O que nos importa? Quais caminhos queremos (ou não) seguir?

Calar. Observar. Sentir. Ser rasgada pelo não dito até inundar, transbordar, transformar. Embora o silêncio possa parecer inócuo aos que de foram observam, é, na verdade, possibilidade de reexistência. Descoberta e encontro com os tons de si que se perderam, lhes foram furtados e/ou apagados pela muita performance do ideal que rouba o real, restando apenas o que poderia ser, mas não é.

René Descartes (1596-1650) enunciou o seu postulado central: “Penso, logo existo”. Mas, seria a razão capaz de iluminar aquilo que o ser ainda não soube nomear? É preciso se haver com a inquietude e aprender a bailar com o que até então é mistério a ser descortinado. Mais do que verdades já acabadas, dualidades que cerceiam e/ou instrumentalização do discurso, ser humano é ser processo inacabado, real incompleto, muitos para continuar um. Nada pode nos conter! Somos este mundo vasto e imenso, então, “esteja preparada para si e pro tamanho do universo que habita em você. Por vezes ele explode e escapa. E, faz vítimas. Ou melhor: humanos” (Silva, 2018).

E, neste lugar, sempre múltiplo e heterogêneo, subvertermos a nós mesmas em um intervalo de ouvir a própria voz e erguê-la em favor daquilo que nos importa. Seguimos no silêncio das dores ainda a desembaraçar, buscando fôlego entre frestas que, por vezes, nenhum consolo permanente parece nos dar. Nos forjamos resistência sob ombros de promessas não cumpridas, enquanto os pés se encontram calejados, mas a alma sempre disposta a sonhar, gritar, esperançar.

Aliás, as correntes que outrora aprisionaram as nossos ancestrais nos lembram que a utopia nos faz caminhar (Galeano, 1994) em busca da liberdade de ser, estar e se constituir enquanto sujeito, sociedade e nação que reverbera o som ignorado, mas que jamais poderá ser calado: somos potência! “Somos o que mataram e não morreu, o que dança sobre os cactos e a pedra bruta – somos a luta” (Santos et al, 2005, p. 93).

Por fim, evoco o espírito de denúncia e confronto da filósofa existencialista e escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) que ao afirmar que nada deve nos definir, que nada deve nos sujeitar, que a liberdade deve ser a nossa própria substância, nos lembra que, antes de qualquer meia verdade, somos porque somos e não porque nos idealizaram para então “sermos” artigo de luxo que supre a falta que a falta faz no outro.


Pode ser que eu nem veja, nem perceba
Que tinha uma cerca ali me impedindo apenas de ser
Se tiver mais alguma, eu atravesso, eu me rasgo todo
Eu sangro, eu morro sem medo de ver
Que no meio da relva, brotou a semente daquela canção
Vento derruba as folhas, dos galhos já secos do meu coração
Não há como ficar inteiro nesse roçado
Arar a terra e não trazer nos dedos os calos
Plantar suas sementes sem pegar na enxada

Sem enfiar a mão na terra, sem chorar sangue e água
Ser humano é estar entre o imediato e o imortal
É a luta interna e bruta do bem para vencer o mal
É desatar os nós entre o eu e nós
Entre o pré e o pós
Entre a multidão, mas a sós
(Atravesso, Rico Ayade)


[1] Curta metragem brasileiro, do gênero documentário, escrito e dirigido pelo cineasta Jorge Furtado em 1989, com produção da Casa de Cinema de Porto Alegre. Disponível em: https://youtu.be/eUEfBLRT37k

[2] Música “O Bilhete e o Trovão”, do EP “As Paisagens Conhecidas” – 2015. Composição por “Os Arrais”. Disponível em: https://youtu.be/xAUjCOGBQs8

[3] Música “Emicida- Principia part. Pastor Henrique Vieira, Fabiana Cozza, Pastores do Rosário”, do álbum AmarElo – 2019. Disponível em: https://youtu.be/kjggvv0xM8QC


Cyndi Lauper S. de Freitas é mulher latino americana, seguidora do favelado preto de Nazaré. Discente de Psicologia pela Faculdade Machado Sobrinho (FMS), de Juiz de Fora – Minas Gerais. Membra da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Atual diretora presidenta da MASCI Consultoria, primeira empresa júnior de Minas Gerais. Realiza divulgação científica na Eurekka, maior clínica de terapia online do Brasil. Membra do Grupo de Estudo e Pesquisa em Psicologia, Espiritualidade e Saúde (GEPPES), com interesse na relação entre violência, religião e formação de identidades.


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